SER ILHA
Pinturas recentes de Felipe Góes
A exposição “Ser Ilha” do paulistano Felipe Góes traz oito pinturas realizadas pelo artista nos últimos anos. Como fragmentos de um arquipélago íntimo, essas obras emergem de uma constelação mais ampla da trajetória do artista — paisagens que flertam com o que não se ancora no mundo visível: o cosmos, o universo, as camadas telúricas do imaginário. Para esta mostra, foram escolhidas aquelas que, de algum modo, orbitam a ideia da ilha — não apenas como lugar, mas como estado, condição, presença.
Mas, afinal, o que é uma ilha?
Se nos ativermos a alguns dos sentidos dados pelo dicionário[1], podemos entendê-la geograficamente como “porção de terra com área não tão grande quanto um continente e cercada de água por todos os lados”, ou ainda, por extensão, como “aquilo que se assemelha a uma ilha por estar isolado ou afastado do mundo que o cerca”.
“Ser Ilha”, por sua vez, que dá o título à exposição, abre diversas chaves de leitura. Desde pensar o ser humano que, sendo “como uma ilha”, pode ser/ estar reflexivo, em isolamento, ou reforçando seus valores, princípios e identidade, ou até mesmo, resistindo diante de uma situação em que todo seu entorno pulsa em outras direções.
Podemos ainda pensar em ilha como lugar-refúgio, espaço seguro, de proteção, em que temos quase um santuário onde nos abrigar.
Mas é possível também pensarmos em “Ser Ilha” não como uma metáfora para o ser humano e suas necessidades, mas ela própria como um ser em si, dotado de presença e de existência. Esse deslocamento, nos endereçaria a outros campos como a ecologia, as cosmologias indígenas, e mesmo, a ontologia que reconhece a potência dos objetos e das paisagens como formas de existência.
Deixemos ao espectador divagar sobre esses sentidos e percorrer esta exposição entrelaçando-os, se o quiser.
Aqui, vemos obras que, sugerindo ilhas como “porções de terra” ou “entes em si”, podem suscitar diferentes sentimentos: um primeiro, de proximidade como se visitássemos uma paisagem já conhecida e que é passível de ser experienciada; um segundo, de tensão e mistério, que tanto pode hipnotizar, quanto intrigar. Desse lugar, não sabemos como nos aproximar, e nem se devemos fazê-lo, porque não temos ideia do que esperar.
No primeiro caso, vemos telas de diferentes formatos que sugerem lugares quentes, cheios de árvores, luzes fluorescentes, contornos transbordantes e incertos que disparam pensamentos, lembranças, cheiros, sons. Tudo palpita, são lugares férteis. Em certos momentos, como na Pintura 382, a dimensão da tela em escala humana nos coloca dentro da pintura, como ativos participantes e não como seres que contemplam. O que sentimos é que estamos diante de algo com o qual podemos interagir.
Também em escala humana, mas disparadora de sensações opostas é a Pintura 423. Com esta obra mais complexa e enigmática o primeiro contato é inexplicável e não ousamos tomar parte. Ela não é amigável, mas exerce o poder de nos fascinar. Sentimos uma espécie de ambivalência afetiva - o que acontece nessa ilha? Posso entrar? Devo? A Pintura 423 é como o núcleo das ilhas mais misteriosas, por assim dizer.
Mais distante é a vista que Pintura 360 oferece. Não conseguimos compreender a configuração dos espaços que o artista nos propõe por meio das diversas camadas de tintas que se sobrepõem. Nessa visão quase geológica, percebemos as camadas da própria terra — crosta, manto, núcleo — espelhadas na materialidade da pintura.
As ilhas de Felipe Góes não existem no mundo real. São fabulações, construídas sem mapa ou bússola, nascidas no instante do gesto. São invenções que ganham corpo à medida que são pintadas, como se o artista criasse territórios à deriva, onde podemos nos perder — ou nos encontrar.
Diante dessas ilhas, o que nos acontece é um deslocamento: ora imaginamos, ora reconhecemos; ora sonhamos, ora tememos. Entre o isolamento e o acolhimento, entre o real e o irreal, habitamos por instantes a condição de Ser Ilha.
Texto de Renata Rocco
Junho de 2025
Exposição individual "Ser Ilha" na Zipper Galeria, São Paulo, SP.
[1] Dicionário Michaelis “Ilha”. Acesso disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/ilha. Consulta em: 03 jun. 2025.