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DISCO CELESTE

Na era da fervura

 

   “A era do aquecimento global acabou, agora é a hora da era da fervura global. A mudança climática está aqui. E isso é apenas o começo.”(1) O diagnóstico do secretário-geral da ONU, António Guterres, poderia ser considerado alarmista, carregado de pessimismo, distante da concretude e do real. Mas o Julho de 2023 como o mês mais quente da história pode ser atestado por meio de variados eventos pelos quais fomos atingidos ou soterrados ou colapsados – não sem numerosos avisos. Em agosto de 2019, a Região Sudeste do Brasil teve os céus do entardecer tomados de uma escuridão advinda da fumaça das queimadas na Amazônia. O Pantanal teve nas assustadoras queimadas de 2020 cerca de 17 milhões de animais exterminados. Enchentes e incêndios, em distintas partes do globo, tiveram intensidade recorde nos últimos tempos, nos quais um temporal atípico, neste 2023, vitimou dezenas de pessoas no litoral norte do Estado de São Paulo.

   Disco celeste, de Felipe Góes, se insere nesse contexto não despido de temor e, em consonância, avança em um universo em que os elementos do pictórico se rearranjam sucessivamente e progridem em desdobramentos típicos do meio. O zeitgeist catastrófico num âmbito macro-histórico, em que aquecimento global, alterações climáticas e desmatamento tornam a ecologia uma disciplina central para a sobrevivência do homem. Por outro lado, nunca se valorizou tanto as micronarrativas, as pequenas movimentações da história do cotidiano, a arqueologia do sensível.

   Se levarmos para a história da arte, é relevante perceber que, quanto mais se anunciava próxima a derrocada da pintura, tal linguagem, como uma fênix, revive e, sob uma miríade de abordagens, investigações e materialidades, parece solapar qualquer diagnóstico mais fatalista. “(...) É a pergunta a respeito da possibilidade (ainda) da pintura que está no começo do fim, e é esse começo do fim que tem sido nossa história, a saber, o que estamos acostumados a chamar de modernismo”(2), argumenta o teórico Yve-Alain Bois. “Na verdade, o projeto todo do modernismo - especialmente o da pintura abstrata, que pode ser considerada seu emblema – não teria funcionado sem um mito apocalíptico.”(3)

   A configuração pictórica de Disco celeste ainda tem um componente que a priori pode soar ambígua, mas diz muito sobre a multifacetada produção de arte. O título da individual remete à imagem deflagradora da Pintura 441 (2023), que é o registro do Nebra Sky Disc, artefato arqueológico da Era do Bronze, cerca de 1.600 a.C., encontrado em Nebra, Alemanha, nas cercanias de Leipzig. Talvez a mais arcaica representação do céu, também pode ter sido um tipo de calendário. E, numa visada mais apressada, o objeto do tamanho de uma pizza guarda semelhanças com um desenho primevo, lúdico, infantil.

   É por meio do labor cromático, volumétrico e de paleta de Góes que o conjunto ganha um fundo entre o violeta e o púrpura, a ressaltar os elementos astronômicos da peça em dourado e que, numa mesma ágil olhada, fica similar a um rosto rudimentarmente alegre. Algo entre o Smiley, símbolo do gênero musical acid house, e um (superbatido) emoji. O cromatismo do artista que poderia ser visto como algo mais afeito ao drama e ao romântico traça, assim, elos com uma hiperbanalidade, quase um restolho da comunicação massiva e pulverizada de agora.

   De forma concomitante, também se percebe a busca por fontes mais vernaculares, de tempos e períodos outros menos agitados e mais perenes – não à toa há em um aspecto mais geral uma ampla valorização do rupestre de locais como Chauvet, na França (captado pelas mais tecnológicas câmeras do alemão Werner Herzog em documentário de 2010), e Serra da Capivara, no Piauí, por exemplo. E existe essa curiosidade astrofísica, essa olhada para o firmamento que magnetiza o homem desde tempos remotos e que, ainda hoje, gera respostas enigmáticas e abertas (esqueçam as manifestações do terraplanismo e da militância anticientífica e de combate à intelectualidade, entre outras chagas correntes).

   Na sua particular pesquisa do gênero da paisagem, Góes exibe pontos de contato com fases anteriores e, em outro sentido, o recorte de Disco celeste aparenta, se visto conjuntamente, como um novo momento de sua produção. Por exemplo, na coletiva Fragmentos de um discurso pictórico (Roberto Alban, Salvador, 2017), a tela Pintura 311 (2017) já trazia uma atmosfera próxima de um cataclismo. “Se anteriormente havia uma atmosfera de um ‘mal’ próximo da eclosão, hoje não se tem mais os meios-tons: o horror (dos próprios ritmos da natureza, dos perigos do homem contra o meio ambiente etc.) expele seus rastros de fúria, tal qual um vulcão a explodir e, a seguir, derreter e destruir tudo o que se interpõe em seu curso”(4), analisa o autor no catálogo da mostra.

   Atualmente, em Disco celeste, o artista paulistano aparenta comentar que estamos mergulhados em meio à tal lava a escorrer continuamente de distintos dutos e, no entanto, o contexto transparece um congelamento, uma letargia paralisante. Algo como um panorama pós-catastrófico visto num flash de olhar. As cores a iluminar essa tragédia também se conectam às anteriores 311 e também às 299 e 306, do mesmo 2017, e, hoje, neste 2023 em rota de reconstrução, são observadas no recorte da individual nos quadros Pintura 416 (2021) e Pintura 430 (2022), por exemplo.

   No hábil manejo entre escalas diversas, Góes, contudo, traz elementos recondicionados para instigarem nossa mirada de hoje. Em Pintura 431, Pintura 433 e Pintura 439, todas deste 2023, o que se descortina à nossa frente tem a ver com uma paisagem cuja amplidão é cortada ao centro por um curso de algo. O cromatismo estrategicamente cria um lócus cheio de ambiguidade, por meio da utilização de tons entre o cinza, o azul e o verde – muito pouco com o rosa e o violeta. Tal rebaixamento poderia apontar alguma pacificação ou a busca de algo perto disso? Não sabemos. E essa incerteza ajuda a tornar movediço o corpus de obra do artista, que abre possibilidades variadas no verde e amarelo de telas como Pintura 414 (2021) e nos gracejos com as camadas de memória, afetiva ou coletiva, do disco de Nebra. Junto das outras pinturas, abre possibilidades ainda muito permeáveis e que não decretam um taxativo encerramento ou eventual falta de pertinência do universo de pincéis, tintas, superfícies, conceitos, materialidades.

 

Texto de Mario Gioia

Agosto de 2023

Exposição individual Disco Celeste na Zipper Galeria, São Paulo, SP.

 

 

1.BORDALLO, Emmanuelle. Fervura global - Julho de 2023 será mês mais quente da História, alerta ONU. O Globo, caderno Mundo, 28.jul.2023, p.15.

2.BOIS, Yve-Alain. A Pintura como Modelo. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009, p. 277.

3.BOIS, Yve-Alain. Idem, p. 277.

4.ROBERTO ALBAN GALERIA. Fragmentos de um discurso pictórico, 2017. Salvador, Roberto Alban Galeria, 2017.

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